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Artigos
São Lucas - O médico evangelista

Dr. Luiz Carlos Raya*

Resumir a história da medicina - cuja existência sempre foi acompanhada de dor, sofrimento e doenças - e sintetizar a história da piedade na medicina, que nasceu com o gesto médico, são tarefas ingentes e quase impossíveis. Contudo, não é difícil verificar que a Medicina continua granjeando enorme prestígio, que a acompanha desde os primórdios do Xamanismo quando atribuía as doenças a alguma desarmonia em relação à ordem cósmica, até a modernidade científica, ainda que impregnada do cientificismo originado no século XIX.

Asclépio, médico-divindade da Grécia pré-helência, que na mitologia se confunde com Inhotep para os antigos egípcios e com Esculápio dos romanos, foi considerado o fundador da medicina, notabilizou-se por sua habilidade em cirurgia e no tratamento com drogas. Asclépio, no final do segundo milênio antes de Cristo, foi glorificado como médico e era considerado o deus dominante da cura, associado a Hygiéia e Panakéia, suas filhas e também deusas, representantes dos dois aspectos da Medicina: a prevenção e a cura. Os conhecimentos preventivos e curativos de Asclépio e suas filhas, que envolviam inclusive a thaerapia, isto é, “servir a Deus”, procurava conciliar a ligação do homem com a Natureza, através de poderes sobrenaturais e da interpretação de sonhos, pois considerava a doença e a cura fenômenos espirituais.

Com raízes asclepianas, mas também com a herança do xamanismo, pela abordagem holística da Medicina, ultrapassando os mecanismos biológicos para encontrar causas de doenças nas influências ambientais, nos padrões psicológicos e nas relações sociais, emergiu a medicina hipocrática, por volta dos anos 400 a .C. O maior mérito de Hipócrates é o de haver retirado a Medicina dos deuses, entregando-a aos homens. Próximo do Xamanismo, utilizando muitos conceitos asclepianos, mas buscando a ciência, Hipócrates se fez precusor da Medicina ocidental, pois privilegiou a visão do homem na sua intregralidade e elaborou princípios éticos que resistem ao tempo.

Dentre todos os que são parte da história da Medicina - xamãs, feiticeiros, sacerdotes, médicos - o evangelista Lucas, médico grego e cidadão (ou escravo?) romano, que descreveu com doçura e amor a vida de Jesus de Nazaré na Terra, seguindo os seus passos pouco tempo, talvez no ano 43, após seu Calvário, ao mesmo tempo acrescentou um piedoso capítulo à história da Medicina. Lucas impregnou a Medicina de amor, de compaixão, solidariedade e até de cumplicidade , pois aliou aos conhecimentos adquiridos na escola de Medicina de Pádua e aos ensinamentos de Keptah, médico e humanista egípcio, a crença de que o preparo espiritual dos enfermos e o carinho dos médicos são de grande valia no êxito do tratamento instituído. Lucas procurava estimular a confiança no médico e a fé do paciente como fatores fundamentais para a obtenção de bons resultados. Em suas meditações, citadas por Eurico Branco Ribeiro, Lucas considerava que o poder dos deuses seria mera sugestão, mas com influência benéfica para a cura, uma vez que a mente do enfermo possui uma energia capaz de aliviar ou vencer muitos de seus males, quando devidamente conduzida. Muitas das curas atribuída a Lucas, além da eficácia dos tratamentos com ervas e outros remédios naturais, têm sido consideradas milagrosas, como ele próprio relata: “quantas vezes, pedindo o auxílio de Deus, não obtive a cessação de severos sofrimentos, ao colocar a mão sobre a cabeça do paciente, para que a corrente da força mental pudesse passar do meu querer, para os seus centros vitais, quando bem preparados para a receptividade desejada! Que os médicos do futuro também se utilizem desses meios para aliviar os seus clientes!” E explicando as curas que descreveu no Terceiro Evangelho e no Atos dos Apóstolos, Lucas enaltecia o poder do Espirito Santo, suficiente por si só, de produzi-los, uma vez que muitos homens teriam a faculdade de transmitir fluidos superiores, por delegação de Deus, produzindo curas notáveis, como as que o próprio Lucas conseguia. E indagava: “por que os médicos não se aperfeiçoam em ministrá-las, deixando de utilizar mezinhas e alquimias, ou recorrendo a esses tratamentos apenas como último recurso?” Ao invés do pagamento em ouro pelo cuidado dos enfermos, como o exemplo da cura de lesões cutâneas de Thacia, Lucas exigia, como recompensa pelo tratamento médico, que os pacientes ouvissem dele a história de Jesus e se redimissem dos pecados cometidos! Da mesma forma que pairam dúvidas sobre o dia dedicado a São Lucas, 18 de outubro, corresponder ao seu nascimento ou à sua morte por decapitação, não há informações precisas sobre a época em que recebeu o titulo de Patrono dos Médicos, mas provavelmente foi inicialmente patrono dos médicos católicos, pela profunda religiosidade de sua Medicina. Há um sem número de histórias, lendas, comemorações e invocações em torno do médico e pintor São Lucas, e uma dessas orações pede ao santo, tratamento para o espírito mais do que para o corpo: “Deus Todo Poderoso, que chamaste Lucas, o médico, cuja glorificação está no Evangelho, para ser um evangelista e médico da alma, seja do Teu agrado que, através dos remédios salutares da doutrina que ele divulgou, todos os males de nossa alma fiquem curados; pelos méritos de Teu filho Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém”. É certo, porém, que na França, em 1427, já era realizada a sua festa em 18 de outubro, e que na Universidade de Pádua, na Itália, em 1463, São Lucas foi proclamado patrono do Colégio dos Filósofos e dos Médicos e em sua homenagem o ano letivo tinha início nessa data. Em inúmeros países, inclusive no Brasil, a mesma data tem sido festejada como Dia do Médico, reverenciando o patrono e homenageando os médicos. Interessante transcrever, da obra de Eurico Branco Ribeiro, que em 18 de outubro de 1957, falando perante a Sociedade Médica São Lucas, o mestre Hilário Veiga de Carvalho acrescentou aos títulos de São Lucas, “evangelista, médico, primeiro historiador eclesiástico, primeiro hinologista cristão, primeiro pintor cristão, patrono dos pintores e patrono dos médicos”, também o de “mestre em deontologia”, lembrando-se da narrativa bíblica, dos Evangelhos de Mateus e Lucas, sobre a mulher que se esvaía em sangue, curada por Jesus após várias consultas e sofrimentos com muitos médicos, mas piorando sempre; Lucas teria dado uma lição de deontologia e ética, ao dizer que “ninguém tinha podido curá-la”, sem argüir eventual incapacidade dos colegas médicos.

Não me parece fora do propósito trazer para os dias a descrições de Platão no Livro IV das Leis: “Já observaste que há duas classes de pacientes (...), os escravos e os homens livres? E os médicos-escravos correm de um lado para outro e curam os escravos, quando não os atendem nos ambulatórios. Esses clínicos nunca falam com os clientes pessoalmente nem permitem que eles exponham suas próprias queixas. O médico-escravo receita o que a mera experiência indica, como se tivesse conhecimento exato e, depois que dá suas ordens, como um tirano, sai correndo com a mesma petulância para ver outro servo doente. (...) No entanto, o outro médico, que é um homem livre, atende e trata homens livres, faz uma anamnese recuada e entra a fundo na natureza da desordem; trava conversa como o paciente e com seus amigos e, ao mesmo tempo que obtém informações dele, vai lhe dando instruções na medida do possível. Mas não lhe receitará nada até que o tenha convencido.” (...) Talvez pudéssemos adotar, como sugerido por Bernie Siegel, que “todos os médicos deveriam trabalhar, como parte de sua formação profissional, com pessoas portadores de doenças “incuráveis”. Seriam proibidos de receitar medicamentos ou intervenções cirúrgicas; precisariam, isso sim, sair a campo e ajudar os doentes afagando-os, rezando com eles, participando, no nível emocional, de suas dores.”... Seria o reconhecimento da religiosidade, imprescindível na praxis médica, e nesse sentido, a frase em epígrafe do Evangelho de Lucas é emblemática: desafio, censura ou exortação? Mas certamente não se refere a doenças físicas, de médico, e sim ao mecanicismo/materialismo, que ignora a alma e a fé, robotizando o ato médico.

 

* Dr. Luiz Carlos Raya, nasceu em 20/11/1934 foi médico pediatra, ex-presidente do Conselho Deliberativo do Centro Médico docente de Ética Médica do curso de Medicina Barão de Mauá e membro da Academia Ribeirão Pretana de Letras. Secretário Municipal da Saúde de Ribeirão Preto até o seu falecimento em 18/09/2004.

 

Esta matéria foi publicada com autorização de sua esposa Dª. Wanda Aprili Raya. Com nossos agradecimentos.

Fonte:Revista Ser Médico da Cremesp. Jan/Fev/Mar/03 Ano VI nº 22


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