Um Canto Terapêutico

Tereza Raquel de Melo Alcântara-Silva*


A atividade musical apresenta uma riqueza incontestável, vez que a música envolve vários aspectos, dos quais, o físico, o emocional, o cultural, o social etc. A música acompanha o homem em toda sua trajetória de vida; é tão verdade, que há registros confirmando sua presença desde os primórdios da humanidade. A música identifica as nações, faz parte da cultura dos povos. A música é utilizada, ainda, com funções específicas como: músicas de trabalho para aumentar a força produtiva do trabalhador; as canções de ninar cantadas pelas mães para embalar/aconchegar seus filhos; os cantos religiosos; os cantos de guerra e a música como terapia (musicoterapia).

Uma das atividades musicais que podemos ressaltar é o canto. O ato de cantar oferece ao indivíduo a oportunidade dele descobrir a sua própria voz, que muitas vezes, significa encontrar o próprio equilíbrio psicológico. Cantar permite, ainda, a expressão de sentimentos internos e das emoções. Um dos privilégios da voz é que ela tem a capacidade de unir ao mesmo tempo o texto à música o que a torna incomparável a outro instrumento.

O canto pode acontecer de forma individual (solos) ou em grupo. Nesta categoria encontra-se dentre outros os duos, os trios, os quartetos e o coral (masculino, feminino, misto, infantil etc). O canto coral consiste em um agrupamento de pessoas que, normalmente reúne-se periodicamente, com o objetivo comum: CANTAR. O cantar envolve principalmente a aprendizagem (técnicas do canto e de repertório) e a satisfação pessoal.

O canto coral pode ter função estética e/ou terapêutica e que para ambos, existem objetivos comuns e específicos. Todavia, pensamos que estes objetivos, tanto no coro estético quanto no coro terapêutico, são inseparáveis. Contudo, dependendo da função para o qual foi formado, alguns dos objetivos são mais evidenciados do que os outros. Alguns objetivos que podemos alcançar com um coro são: melhorar as relações interpessoais, trabalhar o respeito ao limite do outro, facilitar as interações e integrações sociais, solidariedade, estimular a expressão de sentimentos comuns, trabalhar a auto-estima, a segurança, a criatividade, espontaneidade, trabalhar o reconhecimento do próprio corpo etc. Além disso pode ainda, ser um momento de prazer e relaxamento.

O coral pode ser formado por cantores profissionais - aqueles que possuem conhecimentos musicais - e pode ser formado por leigos - pessoas que não têm conhecimento de música- para estes, principalmente, basta possuir o desejo de cantar e, é neste contexto que o coral da Associação dos Deficientes Físicos de Goiás - ADFEGO está inserido.

O Coral ADFEGO foi criado em maio de 1998 pela regente Deise Luci Barsotti Ferreira e esteve sob sua direção até fevereiro de 2000, quando esta direção foi assumida por mim. É formado exclusivamente por adultos, portador de deficiência física (homens e mulheres) que sejam associados a ADFEGO. Os ensaios acontecem duas vezes por semana com duas horas de duração cada. O repertório é formado basicamente de música popular brasileira, músicas folclóricas e regionais.

O coro seja ele estético ou terapêutico deve ser dirigido por um músico com formação acadêmica específica. Entretanto, o diretor do coro terapêutico, deve, além de ser um músico profissional ter uma formação acadêmica em musicoterapia.

Este artigo tem, como objetivo mostrar como o coro terapêutico pode beneficiar os portadores de necessidades especiais, dentre estes, de alguma forma, os portadores de distonia, vez que constitui uma doença neurológica que apresenta como característica básica, contrações musculares mantidas, normalmente acompanhada de dor, levando sofrimento físico e emocional ao indivíduo portador.

O meu trabalho como regente e musicoterapeuta de um coro, cujos integrantes são portadores de necessidades especiais, começa da escolha do repertório. Normalmente são músicas que agradam a maioria. Buscamos ainda, fazer as adaptações necessárias em relação ao grau de dificuldade das peças, a extensão vocal, a divisão das vozes (uma, duas, três ou quatro vozes). As peças não devem ser demasiadamente difíceis que necessitem de inúmeros e desanimadores ensaios, pois, o nosso objetivo é ensinar de maneira que o aprendizado do grupo possa fluir com maior rapidez, afim de que obtenham um resultado satisfatório em um tempo menor. É importante lembrar que geralmente, os coralistas vão para os ensaios depois de uma jornada cansativa de trabalho, por esta razão o regente/musicoterapeuta deve considerar este elemento, para que o ensaio, alcance um bom aprendizado e ao mesmo tempo propicie momento de prazer e satisfação.

Os ensaios, normalmente, seguem a mesma rotina. Antes de cantarmos, fazemos alongamento e relaxamento da musculatura corporal e facial, respiração, aquecimento vocal. Todos os momentos são interativos, buscamos respeitar o limite físico e de expressão de cada um. Neste sentido, é importante a presença do musicoterapeuta, pois, ele está habilitado a desempenhar um importante papel junto ao coro que pode ocorrer através da detecção das causas de sua deficiência, quais as limitações motoras que ela impõe, quais os seus anseios como pessoa, o que o motivou a procurar o coro e quais suas expectativas. Estes dados são confirmados, também, durante os ensaios através da observação do comportamento e dos comentários que são trazidos pelos coralistas.

Como exemplo estaremos mencionando respostas de alguns dos integrantes do coro à seguinte pergunta: Por que você resolveu cantar no coral?

- Porque gosto de fazer tudo corretamente e jamais tive alguém para me ensinar a cantar.

- Porque gosto de cantar e me sinto bem

- Para melhorar minha timidez em cantar em público

- Para que eu aprendesse a cantar e me relacionar mais com as pessoas.

- Porque gosto e também porque me acalma

- Por causa da depressão e por indicação da psicóloga

- Pra sair da ociosidade

- Porque eu gosto de cantar e para auxiliar os colegas

Podemos destacar nestas respostas alguns elementos importantes que foram expressos claramente e implicitamente como o prazer em cantar, a busca de melhorar a auto-estima, melhorar a interação social, relaxamento, prevenção psiquiátrica (depressão, ansiedade etc), necessidade de aceitação e de ajuda que podem ser trabalhados no coro terapêutico.

Quando perguntamos o que o coro representa em sua vida, as respostas foram as seguintes:

- A oportunidade de poder viver a música assim como eu vivo a vida

- Uma terapia;

- Preenche o vazio dentro de mim: é inexplicável a alegria que sinto;

- Representa um relaxamento, diversão e o mais importante, ter mais conhecimento musical;

- Cantar é uma forma de expressar o que estou sentindo. Me sinto bem quando canto;

- Modo de me relacionar, relaxar e distração do cotidiano;

- Na falta do que fazer preencheu com muita alegria a minha ociosidade;

- Atividade cultural;

- Um ponto significativo.

Estas respostas deixam claro, que a busca pelo coro não é apenas pelo cantar, mas, pela necessidade de se expressarem como gente, que muitas vezes, não têm condições sociais, culturais e emocionais para se colocarem. São pessoas que fazem parte do grupo da exclusão social. O coro terapêutico, neste sentido, funciona como um suporte do ponto de vista emocional, oferecendo condições para que estas pessoas possam se autoconhecer, auto-expressar através da música juntamente com um grupo em que a maioria de seus integrantes encontra-se em condições semelhantes. Nesse processo, não inclui apenas o aprendizado musical, mas o aprendizado da vida e para a vida. Trabalham em auxílio mútuo no compartilhar de suas dificuldades, no respeito ao limite do outro, no compartilhar objetivos comuns, no expressar através das músicas cantadas, na satisfação obtida através do resultado que acontecem nos próprios ensaios e nas apresentações.

Enfim, acreditamos que o coro terapêutico traz benefícios do ponto de vista emocional e estes por sua vez, influenciam no físico/motor, pois há entre eles uma inter-relação. Além do mais, numa visão sistêmica o indivíduo deve ser visto como um todo, considerando os aspectos bio-psico-sócio-cultual. Por esta razão, entendemos que não basta a criação de projetos, incentivos, leis com vistas a minimizar a exclusão social, sem antes propiciarem meios para que os excluídos se sintam capazes e em condições emocionais para fazerem valer os seus direitos. Estas condições implicam, principalmente, a aceitação de sua condição física ao invés do conformismo com a mesma, a elevação da auto-estima, cujo resultado final será proporcionar ao indivíduo portador de necessidades especiais o sentimento de capacidade ao invés do sentimento de invalidez, que normalmente os persegue.

O Coral Adfego durante o ano é convidado para várias apresentações em locais diversos. Dentre eles queremos destacar dentre outros: Hospital das Clínicas UFG, CRER, participou ainda do I Congresso Goiano de Neurologia (2003), Concertos em Série promovido pela Fundação Jaime Câmara (2002), Galeria de Arte Bauhaus (Natal de 2004) e em várias outras instituições públicas e privadas. O nosso grande sonho e desejo é que o resultado deste trabalho possa ser registrado em um CD para que outras pessoas se encorajem e busquem uma melhor qualidade de vida. Temos, também, a esperança de conseguirmos o patrocínio para a gravação deste. Certamente este ato, trará alegria a estas pessoas portadoras de deficiência física, incluindo nelas o portador de distonia e a confirmação de que eles são capazes e eficientes e não deficientes.

Gostaria de ressaltar a importância das associações, dentre elas a Adfego (Associação dos Deficientes Físicos de Goiás) por propiciar aos seus associados alguns serviços e atividades como coral, grupo de dança, esporte (várias modalidades), psicólogo, fisioterapia, fonoaudilogia e a Associação Brasileira dos Portadores de Distonias, que através deste Jornal Informativo leva ao conhecimento do público informações úteis que podem minimizar a dor física e emocional de pessoas que possuem alguma tipo de deficiência. Os portadores de necessidades especiais não precisam do sentimento de pena por serem deficientes. A deficiência não os pode elevar a um patamar de incapacitados. O que precisa haver é a conscientização da população para reconhecerem que estas pessoas, são capazes e eficientes no que fazem, todavia, precisam antes de tudo, passar por um processo de aceitação, elevação da auto-estima para não haver o risco deles mesmos se excluírem socialmente e a oportunidade de se mostrarem capazes. Neste sentido, o coro terapêutico pode constituir em um grande veículo para propiciar estas condições, cabendo à sociedade, simplesmente, o papel de os enxergarem como seres humanos.

Finalmente, com um poema que escrevi que diz:

“Quanta diferença há entre o meu mundo e o seu.

No meu carro ouço Mozart, Beethoven, Bach ...

E observo pela transparência do vidro que nos separa,

Você,

Descalço, pelado, mal amado

Sentindo na pele o frio da indiferença

Vislumbrando a estampa da desigualdade

Ouvindo mensagens que desabonam a dignidade humana

Recebendo restos que não me servem

Comendo sobras que deixei.

 

Lá está você, ser humano

Realmente...

Quanta diferença há entre o meu mundo e o seu!

Quanta diferença há entre nós,

Simplesmente seres humanos:

“Iguais a você”.

 

* Tereza Raquel de Melo Alcântara-Silva - Regente do Coro Adfego Musicoterapeuta do IINEURO - Instituto Integrado de Neurociências
Presidente da Sociedade Goiana de Musicoterapia
Menstranda em Música/Musicoterapia UFG
Graduada em Musicoterapia UFG
Graduada em Piano - UFG

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